Sunday, November 8, 2009

Cow Blues

Ambientem este post com isto: http://v.youku.com/v_show/id_XMjI0MDk0MTI=.html

O céu é diferente. Na memória. Duvido que ele alguma vez tenha tido este aspecto. Os anúncios das cassetes vídeo devem ter mudado alguma coisa na nossa forma de reimaginar o passado, e todas as memórias parecem guardadas numa fita de VHS rasca filmada à maneira do Lars von Trier, sem música, somente uma voz deprimida no fundo, nem sequer amargurada pelo acre sabor do longo fio do tempo, apenas uma narração de estilo, cheia de linhas de pensamento intensas e blusiadas de dor que, por o sentimento que delas reverbera ser tão agradável -- e sendo ele o próprio objectivo--, se podem muito bem passar de formular as frases que compõem o discurso em si. Assim é o primeiro dia da faculdade. Um céu de cor acrimoniosa azul, tentando conter nas suas entranhas a amalgama de pensamentos que o seguirão. E apenas em fantasia se reformula a ideia de que houveram sensações de entusiasmo, expectativa, nervosismo, grandiosidade, orgulho e medo, como se fosse um tributo estilístico que se deve prestar à nossa própria imaginação. Na realidade creio que apenas havia o habitual: a inegabilidade presente.
Assim que está estipulado o início, o resto corre muito depressa na mente. Na realidade também é assim. Uma vez o produto cobiçado ao alcance, o resto é tão inevitável que aconteça que o tempo não lhe quer dar nem o mesmo encanto nem a mesma atenção. Como será o fim?
O liceu é um período de fantasia. Todos os cursos se parecem com os das revistas, como as mulheres. Maquilhadas, extasiantes, belas, cheias de curvas excitantes, de aventura no que escondem, e nos seus olhos, claro, bem lá no fundo, onde o desejo é visível, a via para o nirvana.
O curso já não é tanto assim. Ao primeiro contacto falta-lhe qualquer coisa. Talvez um coelhinho no canto. Mas ainda não estávamos prontos. Onde meti a imaginação de há bocado? Ah, cá está. Nem por aí deixamos de entrar na toca da Alice. E quando os olhos da víbora cruzam os nossos pela primeira vez... o primeiro semestre dura metade do curso. Tudo é perfeito e inocente, e passa-se a maior parte do tempo na cama ou a não fazer nada. Só se lhe vêm os olhos, as mãos juntas sobre os lençóis, por entre as ervas, onde transpira o passado que vai ganhando força. Mal se apercebem os amantes que com cada nodo de volúpia que com a língua desatam, cada murmúrio de vida que se passam um ao outro, alimentam a criatura que, sedenta, invejosa de tanta abundância, as olha com cobiça. Tudo é escuro aqui. A memória gosta de deixar aos amantes idos a privacidade de já terem sido. Há um copo de whisky no canto da memória, mas alguém o deixou lá só para ambientar quem um dia consultaria esta visão. Nunca era preciso beber nesses tempos. O silêncio outra vez, o ângulo do olhar vacilante. São os últimos dias do primeiro semestre. Já se bebe do copo afinal e um postal antigo usado como base deixou uma pasta seca colado ao copo. Não sai, que raio. Talvez com a faca. Um passatempo para quem não tem nada para fazer. Já entregaste o trabalho de TFCOM? O tecto não era desta cor. Está mais castanho ou cinzento. Também é normal que o branco deixado tantos anos na memória se vá cobrindo de pó e a fibra crua dos vasos de conserva vá secando, encolhendo, soltando o forte agarro ao cadáver da verdade, escorregando inerte nas areias do breu do lago. «Já foi», diz o vacilar da câmara. A voz tem alguma filosofia de ala hospitalar a dizer novamente, basta ouvir o tom de voz fraco, basta a arrogância deste hemisfério esquerdo que tem sempre de falar nestas ocasiões. Talvez agora apareça um candeeiro e da luz fraca que tomba do abât-jour como a neve morna de Outubro, deslizando sobre a corda de uma guitarra do mississipi, se sinta algo. O som sente-se mais do que se ouve, é um local de reclusão; a dor está prestes a falar. Para tal é necessário uma devastação suficiente: a cama meia vazia, apenas o próprio corpo esperando a voz de um dos lados, uma almofada visivelmente usada há pouco tempo por uma longa mulher, e nas paredes talvez um velho papel com um padrão desactualizado a cair... mas sem rachas, nem chuva a bater na parede. Isso cortaria a depressão. Esta memória tem de ser seca, desvitalizada, corroída pelo arranhar da ampulheta. E assim, exalada como fumo, num desabafo de negrume, a opinião da consciência profere-se a si própria. «Por vezes, o homem tem de enfrentar certas condições adversas para uma consciencialização da sua identidade e caminhos próprios no jogo do real e cuj' infelizmente a mentalização prévia levaria simultâneamente a um embotar da dor e inevitavelmente à sua inutilidade consequente. Por tais razões é que fé no caminho deve ser conservada, pois a focalização na verdade leva apenas ao tropeçar incessante nos intrincados rendilhados da lógica e nunca a um término, onde o solo é firme e a mente pode observar a paisagem em curso de um ponto de vista mais contemplativo.» A terceira dimensão das mulheres é a que escava e fende; talvez não entrenhassem a duas dimensões, nas capas das revistas, mas o processo de aprofundamento da relação com elas continua a ser muito pouco cirúrgico.
A corte ao curso é longa como a atenção que um caçador dá em estender minuciosamente a armadilha sob os seus próprios pés. E quantas espécies extinctas o podem acusar de ser incompetente? Há um roçar, primeiro distante, dos olhos, sob a luz eléctrica de uma sala isolada, e depois, o movimento descoordenado, o primeiro movimento, pensado ao longo de meses, anos de subserviência à curiosa emoção obsessiva, brusco e cauteloso, como o cair planeado de um quadro na parede, o quebrar de grilhetas, agarrando a caneta, e então, desenhando intensos traços de sedução na pele dela, repintando as saliências da sua silhueta arrojada, da volúpia, algo sucede, a necessidade de tomar, possuir, operando sob os lençóis, uma palavra a um professor qualquer numa noite embriagada, e no dia seguinte uma rapariga adormecida sobre a alvura das manhãs e um orientador novo. E a pressão, pedida por insuperabilidade, e o choque, semanal, das reuniões, constantes, batendo na tese, nas vírgulas, no texto, nas equações, e o plano, o plano, o plano da tese, sempre o plano, o plano, o plano, um toque no ombro dela, a almofada mordida, um breve abrir dos olhos para saber dos dela cerrados, o ranger de dentes do orientador enfurecido, e sempre os gritos, os gritos, acumulando-se no triângulo, no pescoço dela, esperando, desabrochando, um dia, no site, lá apareceu, a data, uma singularidade crescente, a defesa, e a explosão... e mais nada.
Breve, o fim do curso é uma expressão de êxtase: vê-se a chegar, dura pouco, e por momentos nada mais interessa. A Física não interessa, o doutoramento não interessa, e todos os neurónios ainda em condições de andar são chamados à câmara de gás para serem processados por quantidades enormes de álcool. Que voluptuosa chacina, sem sentimento, a ideia pura, clara e concebida de que a revolução opera-se mediante o guilhotinar dos funcionários dos objectivos anteriores.
Pouco depois, dentro da roupa o desejo outra vez. Ah, Lídia...

Espera, Lídia? Isto não é meu. Quem é que deixou esta memória aqui?

1 comment:

Anonymous said...
This comment has been removed by a blog administrator.